Quem já aplicou ou viu aplicar qualquer um destes métodos na cabeça de uma vitela, sabe que causa uma reação, às vezes violenta, de fuga, de retração, a estes animais. Sobre isto também acho que ninguém tem dúvidas ou pelo menos não as deveria ter. É evidência científica. Resta-nos a consideração final – devemos fazer algo? É nosso dever ético evitar a dor? Mais uma vez não há duvidas de que para nosso caso, ou o de todos os membros da nossa espécie, a resposta é sim. É inadmissível colocar um ferro em brasa ou uma pasta que queima a pele de alguém. Mais complicado é o que responder
em relação aos animais que criamos e supostamente protegemos. Admitamos que a aplicação de um destes métodos é admissível em certas circunstâncias e que até poderá beneficiar o bem-estar a longo prazo. Admitamos que a descorna de vitelas futuras vacas de leite, é plausível. No seguimento das primeiras premissas, este procedimento só será aceitável se a dor que causa for totalmente, ou na sua maior parte, eliminada. É parte integral do contracto que assinámos com os animais que nos fornecem alimentos.
Foi, portanto, com preocupação e espanto, que ouvi contarem-me que numa sessão de (suposta) formação em bem-estar animal, foi transmitida a ideia de que não é obrigatório o maneio da dor na descorna de vitelas em vacarias de leite e que apenas será recomendado fazê-lo porque poderá favorecer a classificação necessária para a certificação em bem-estar da exploração. Ou seja, controlamos a dor na descorna porque isso nos traz vantagens e não porque interessa aos animais.
É verdade que a legislação não refere especificamente (por enquanto) que a anestesia e a analgesia na descorna de vitelas são obrigatórias. No entanto, também é verdade que a legislação portuguesa refere que “O proprietário ou detentor dos animais deve tomar todas as medidas necessárias para assegurar bem-estar dos animais ao seu cuidado e para garantir que não lhe sejam causadas dores, lesões ou sofrimentos desnecessários” (Decreto-Lei n.º 155/2008 de 07 de agosto). Releiam: que não lhes sejam causadas dores desnecessárias! Lembra-vos alguma coisa? Só porque não há uma menção especifica à descorna, podemos depreender que não está incluída?
É claro que se pode argumentar que a descorna é necessária e, nalgumas circunstâncias, até defensável em termos de bem-estar animal (como admiti mais acima). Mas isso é a descorna, não a dor. A dor é desnecessária porque temos ferramentas para a reduzir de forma substancial.
Também se pode alegar que não há qualquer menção oficial à obrigatoriedade de apenas descornar vitelas de leite após estarem protegidas por anestesia
e analgesia. Isto não é bem verdade – recentemente foi publicado um parecer oficial sobre o assunto (Esclarecimento Técnico n.º 10/DGAV/2023) no qual é preconizado que a descorna de vitela seja feita por termocautério após anestesia regional e administração de analgésico. Ainda se refere que o método preferencial de descorna é o ferro quente e que a idade ideal para o fazer é até aos 2 meses (ver https://www.dgav.pt/wp-content/uploads/2023/11/10_DGAV_ET_ Descorna_Bovinos.pdf).
Por absurdo, aceitemos que o Decreto-Lei não considera a descorna de vitelas como uma fonte de dor desnecessária e que Esclarecimento Técnico não é mais do que uma opinião. Será que mesmo assim não é eticamente obrigatório mitigar a dor quando colocamos um ferro quente na cabeça de um bovino jovem? Como podemos querer passar a imagem de boas práticas na promoção do bem-estar para os consumidores que procuram os produtos certificados, quando nem o básico podemos garantir? Como podemos ensinar boas-práticas de bem-estar animal quando consideramos o controlo de “dor desnecessária” como apenas uma parcela no cálculo da pontuação? Não deveríamos estar a ensinar os produtores a fazer bem a descorna, em vez de os convencer que é qualquer coisa negociável?
Não haverá linhas vermelhas na senda da certificação?
É preciso que os criadores acreditem que a promoção e defesa do bem-estar animal não é (apenas) uma exigência do consumidor, mas também uma boa prática e um dever ético. Senão, a certificação em bem-estar irá um dia cair como um castelo de cartas.
PARTE PRÁTICA
Aproveitando esta reflexão sobre a necessidade de combater a dor nos nossos animais, deixamos aqui algumas considerações relativamente ao que são as boas práticas na descorna:
• A descorna só deve ser feita quando absolutamente necessária para o bem-estar e maneio adequado dos animais. 4A descorna deve ser feita por
termo-cautério ( ferro quente). Tanto a amputação como a pasta cáustica causam dores mais profundas e prolongadas e não são bem controladas pela anestesia e analgesia.
• A descorna deve ser feita até às 8 semanas de vida e por quem tem treino suficiente, tanto no procedimento como na aplicação da anestesia regional. 4A anestesia dos nervos cornuais dos dois lados deve ser feita cerca de 2 minutos antes do procedimento. Deve ser feita por um médico-veterinário ou por alguém treinado por este.
• A analgesia é essencial para reduzir a dor nas horas após o procedimento. O analgésico deve ser administrado no mesmo momento da anestesia regional. 4 Os sedativos NÃO SUBSTITUEM a anestesia e a analgesia. Podem ser usados (sob recomendação e vigilância médico-veterinária) para facilitar o manuseamento e o procedimento, mas não têm qualquer poder no controlo da dor.
• Uma forma adicional e muito prática de controlar a dor e promover a cicatrização é a utilização de um gel com anestésicos locais e um desinfectante (MultiSolfen®), em aplicação sobre a ferida da descorna. 4 A descorna de vitelas mais velhas ou bovinos adultos deve ser considerada uma cirurgia e, por isso, apenas pode ser realizada por um médico-veterinário. Nestes casos, a repetição do tratamento analgésico é recomendada já que
são intervenções muito dolorosas, abrangendo uma maior área e prolongando-se muito mais no tempo. Em resumo, a descorna causa dor aguda e por vezes crónica e pode ser facilmente controlada em bovinos jovens. Combater esta dor é uma obrigação ética. Não o fazer, deveria ser considerado inaceitável em qualquer exploração que queira ser certificada em bem-estar animal, independentemente da sua proibição especifica não constar da legislação.