Promover a Mertolenga em cruzamentos como linha materna e definir um programa operacional português para a produção de carne. Numa entrevista à revista Ruminantes, em novembro passado, José Pais apontou estas metas como prioritárias para garantir a continuação da raça autóctone de bovinos com o maior efetivo em Portugal. “À data de hoje, o efetivo nacional de reprodutoras Mertolengas (com mais de 2 anos), de acordo com o SNIRA, conta com cerca de 22.000 animais. Dessas, cerca de 53% integram o Livro Genealógico (LG) e 54% destas estão em cruzamentos, pelo que somente as restantes contribuem para a manutenção e aumento do efetivo puro da raça”, começa por contar José Pais.
De onde vem a Mertolenga?
Em 1873, Bernardo Lima, quando do censo pecuário refere o Mertolengo como “uma variedade do tipo Alentejano, com armação atirando para a mesma projeção somente mais delgada na base e de cor mais retinta, existindo no baixo Alentejo, nas terras de Mértola, e no Algarve nas zonas de Alcoutim e Martinlongo”. O Professor João Paula Nogueira, considera o Mertolengo uma sub-raça do transtagano, e descreve-o como um animal de pouco corpo e cor bastante cereja ou castanho. Miranda do Vale, diz que se diferencia das subraças Alentejana e Algarvia pela cor mais avermelhada. Em 1953, Teófilo Frazão conclui com o seu trabalho nas terras de Mértola e outras regiões do Alentejo, que “o Mertolengo de ontem não é o Mertolengo de hoje” porque “os caracteres do atual Mertolengo são completamente diferentes dos observados há oitenta anos”. Conclusão, o Mertolengo de 2024, é um animal filogeneticamente próximo do Alentejano e que evoluiu ao longo dos tempos para um animal distinto pela interação ambiental, com a intervenção do homem.
Que evolução teve?
A Mertolenga é a raça bovina autóctone que, provavelmente, mais influências teve, ao longo de muitas décadas, de outro tipo de raças e seus cruzamentos. Muito importante para a sua evolução e para a definição das três pelagens que hoje existem na Raça foi também a ação de alguns criadores. Quando eu entrei na Associação, em termos morfológicos existiam diferenças mais marcadas entre os animais de diferentes origens. Tínhamos alguns efetivos onde dizíamos por graça que as vacas tinham “cu de agulha”. Eram animais muito estreitos atrás, com pouca massa muscular, em oposição a outros com alguma conformação muscular no posterior. Hoje já se nota uma evolução significativa, embora o Mertolengo continue a ser um animal de porte médio e com uma conformação muscular mediana. A testagem de machos candidatos a futuros reprodutores, na Herdade da Abóboda no Centro de Experimentação do Baixo Alentejo, contribuiu bastante para essa melhoria. Juntavam-se no mesmo ambiente animais de origens diferentes, testavam-se e selecionavam-se os que tinham melhor desempenho e conformação.
Que razões devem levar os produtores a escolher a raça mertolenga, na ótica de quem não tem vacas e vai começar?
Desde logo, é importante saber que tipo de exploração têm, a sua localização e qual é o objetivo de produção. Em sítios mais pobres, de menor produção forrageira, onde chove menos, faz sentido ter animais mais adaptados, e aí faz muito sentido a Mertolenga. Dizia-se desta raça “até pedras comem”, por que são vacas que aproveitam ao máximo o alimento disponível. São animais adaptados ao sistema de produção e às condições que temos no sul do país, apresentando uma facilidade de parto extraordinária e boas características maternais. Citando a Professora Elvira Sales-Baptista, “ter animais como as vacas Mertolengas que sejam resilientes, ou seja que tenham capacidade para serem minimamente afetados por perturbações na sua oferta alimentar e, se forem afetados, que consigam recuperar rapidamente, continuando a produzir crias e a aleitar, é uma vantagem na adaptação às mudanças”. Em zonas com melhor capacidade forrageira, a raça Mertolenga também faz sentido, usada em linha pura, ou como linha materna na base de cruzamento com outra raça mais especializada, por exemplo Aberdeen-Angus ou Salers. Ou mesmo até com Wagyu, se o objetivo for produzir carne de qualidade. Se o objetivo for produzir peso ao desmame o cruzamento já fará sentido com Charolês ou Limousine. Numa exploração de recursos mais parcos, a Mertolenga em cruzamento também poderá ser uma boa opção.
Como vê a ACBM o futuro da Mertolenga?
Devido às suas excelentes características maternais a Mertolenga sofre um impacto negativo na manutenção do seu efectivo. A apetência da produção para usá-la em cruzamento leva à redução do número de reprodutoras em linha pura, o que a médio/ longo prazo reduz o efectivo nacional. É prova disso os dados do SNIRA divulgados pelo IFAP desde 2013 em 31 de dezembro de cada ano. No final de 2013 tínhamos 31324 reprodutoras e em 31dez2023 este número passou para 21707 (https:// pecuaria.pt/conteudo.php?idart=473). Olhamos para o futuro com otimismo, porque é uma raça com potencial para representar um papel importante no cenário em que vivemos, mas com um trilho a percorrer cheio de pedra pelo caminho. A promoção da Mertolenga como linha materna por excelência no cruzamento, na produção de fêmeas F1 para usar como futuras reprodutoras, é uma estratégia que na nossa opinião faz sentido e pode ter um papel importante no futuro da raça. José Pais é o Secretário Técnico da Associação de Criadores de Bovinos Mertolengos (ACBM). A ACBM gere o Livro Genealógico da Raça desde 1995. É responsável pela evolução, promoção e todos os aspetos técnicos ligados à raça, nomeadamente a testagem de reprodutores e o catálogo anual de touros, em colaboração com o INIAV e a DGAV. Contribui também para o Banco Português de Germoplasma Animal com material genético.
Cada vez mais se fala em sistemas de maneio em modo regenerativo. A movimentação frequente dos animais inerente a este maneio requer que estes sejam tranquilos. A mertolenga adapta-se a este sistema?
Sim, tudo depende do maneio que os animais têm, da maneira como são trabalhados. Em 2018, um técnico do Institut de l’Élevage que nos veio dar formação na área da classificação morfológica linear, dizia que o comportamento animal, em termos de temperamento, depende em 80% do maneio e da interação homem-animal e que apenas 20% é responsabilidade da genética. Temos a prova disso, aqui, na Herdade dos Souséis de Baixo.
Que cuidados deve ter um agricultor antes de comprar reprodutores da raça Mertolenga?
Deve tentar recolher alguma informação junto da Associação, nomeadamente em relação aos animais que vai adquirir. E olhar a alguns indicadores, como o peso ao desmame, a capacidade maternal e o intervalo entre partos. Também deve ir ver as vacas, mães das novilhas, caso seja este o tipo de animais que pretenda adquirir e olhar para a relação peso idade dos animais. É importante conhecer o efetivo e a exploração de origem dos animais. A ACBM está disponível para fornecer todo o apoio necessário a quem estiver interessado/a em fazer parte da família Mertolenga.
Como evoluíram esses indicadores?
Ao longo das últimas 4 décadas o peso ao desmame, a conformação e o ganho médio diário (GMD) após o desmame são parâmetros que evoluíram significativamente. Para tal contribuiu muito a testagem de machos candidatos a futuros reprodutores desde 1978, realizada pela H. da Abóboda e a partir de 1999 pela ACBM. Atualmente os machos que terminam cada teste têm um GMD médio que ronda as 1100 gramas. Na testagem de machos temos outro parâmetro importante que tem sido avaliado que é a eficiência alimentar. Por razões económicas e ambientais é importante que os animais aprovados sejam também os mais eficientes a converter alimento no produto final. Associado a tudo isto, os valores genéticos individuais para o intervalo entre partos e para a componente maternal do peso ao desmame, têm o papel principal na escolha de futuros reprodutores (machos e fêmeas). O recurso à inseminação artificial tem sido outra ferramenta utilizada, que, embora em pequena escala, já demonstra resultados nos efectivos de um grupo restrito de criadores que tem aderido.
Como mede a evolução da linha materna?
A quantificação do efeito do vigor híbrido observado na descendência, de um cruzamento que use a Mertolenga é um factor importante para monitorizar a evolução desta ação “Mertolenga Programa F1”. Neste momento não dispomos de uma unidade com capacidade para poder implementar o ensaio necessário e recolher dados sobre este parâmetro. Estamos num ponto em que os Souséis é uma pequena unidade de demonstração e nos fornece alguns dados.
Qual é o cruzamento que sugere?
Essa é uma das perguntas que muitos criadores me colocam, mas como em tudo, não temos receitas. O cruzamento a escolher por um produtor deverá ter sempre em conta o objetivo de produção. Definido qual o cruzamento, é importante definir qual o emparelhamento mais adequado, na escolha do touro para o seu efetivo. Se fosse produtor, teria um núcleo de Mertolengas para exploração em linha pura e/ou cruzamento e um segundo núcleo de fêmeas F1 de Aberdeen-Angus e/ou Salers. Consoante o objetivo final de produção (vitelos ou carne) usaria neste núcleo touros diferentes.
Que medidas faltam a este setor para que a Mertolenga se desenvolva de forma significativa e sustentada?
Para que isso aconteça, e não só para a Mertolenga, mas sim para todas as raças, melhor, para todo o sector dos bovinos aleitantes em Portugal, falta sem dúvida, definir um “Programa Operacional” para a produção de carne. E aqui falo de carne no global, ou seja, de todas as espécies. Em segundo lugar, ao contrário do que se passa em outros setores, não temos uma organização de topo (interprofissional ou outro tipo) que promova e apoie a produção de carne de bovino. Toda e qualquer medida, mais ou menos setorial, ou exclusiva para determinadas raças ou espécies, pela nossa experiência, não funciona quando implementada avulso sem um plano e uma estratégia agregada.
Qual seria o subsídio certo para justificar utilizar a raça Mertolenga?
Cada um faz as suas contas. Este tipo de apoio às raças autóctones está directamente ligado à margem líquida da actividade, seja ela expressa em Kg desmamados por ha ou em outro tipo de indicador. Para ter uma ideia, um vitelo cruzado ao desmame pode valer o dobro (ou mais) do Mertolengo puro. Ou seja, um apoio de 160€ (valor definido para a Mertolenga no PEPAC) não cobre a diferença. Mas, na minha opinião o caminho não pode passar exclusivamente por um valor maior deste apoio. É importante que a Mertolenga seja valorizada pelo potencial que tem de desempenhar um papel importante no futuro da produção de carne de bovino em Portugal. Lá está, vem novamente à ideia a falta de um “Programa Operacional”.
Como são vendidos os animais puros?
A maior parte são vendidos como Carne Mertolenga DOP através da Promert – Agrupamento de Produtores de Bovinos Mertolengos S.A. O volume de animais vendidos para reprodução nos últimos anos, tem sido baixo.
A Mertolenga é uma raça comercializada internacionalmente?
Por enquanto não. Temos ainda alguns degraus a subir, e voltamos ao mesmo, vem novamente à ideia o tal programa. Tem havido alguns contactos com produtores do outro lado do Atlântico, mas ainda nada de concreto.