Muito terão ouvido falar estas semanas sobre a invasão russa à Ucrânia. Nenhuma mente esclarecida e justa pode defender a posição da Rússia, e também não serei eu a fazê-lo. No entanto, temos que compreender que vários fatores, por ação e omissão, levaram ao que hoje estamos a viver. Em particular a Europa Ocidental que, como um todo, tem uma parte importante de culpa.
Com o desmoronamento da União Soviética, o território da Rússia ficou sem portos de água profunda no Mar Negro, onde poder atracar a sua frota de navios de guerra. Assim, como parte do acordo da separação da Ucrânia da União Soviética, o Estado da Ucrânia acordou alugar a base naval de Sebastopol à Rússia. O contrato durava até 2014, sendo depois extensível.
Cerca do ano 2010, a União Europeia e a Ucrânia negociavam um acordo de integração económica, essencialmente de livre comércio. Negociações que avançaram muito devagar e sempre com muita resistência por parte dos países da União Europeia que são excedentários em produtos agrícolas e não queriam ter concorrência dos agricultores ucranianos. Quando finalmente foram ultrapassadas as dificuldades e se conseguiu chegar a um acordo, não houve a preocupação de negociar outro similar com a Rússia, e como o acordo negociado com a Ucrânia a obrigava, de certa forma, a cortar os laços comerciais com a Rússia, esta não ficou nada contente. Adicionalmente, a União Europeia também pressionou a Ucrânia a não renovar o acordo da concessão da base naval de Sebastopol, na península da Crimeia, à Rússia. Com isto estamos em 2013 e, como consequência destas duas questões, a Rússia, a 20 de fevereiro de 2014, invade a Crimeia e posteriormente fomenta uma rebelião na região leste da Ucrânia, onde assistimos a uma guerra. Em 24 de fevereiro passado, a Rússia decide uma invasão em larga escala, com o objetivo de anexar toda a Ucrânia à Rússia, ou assim parece.
Antes da tomada da Crimeia pelos russos, havia exportação de produtos agrícolas dos portos da Crimeia que terminaram com a invasão russa, uma vez que a comunidade internacional não reconhece essa ocupação/conquista e, juridicamente, ninguém no seu devido juízo vai carregar um navio nesses portos com o risco de ele ser apresado por algum juiz, quanto mais não seja a passar as águas territoriais da Turquia, no Bósforo. Já podem imaginar o que se passará caso o legitimo governo da Ucrânia caia e, no seu lugar, a Rússia ponha um governo fantoche a governar uma Ucrânia ocupada.
Donde, à margem de desejar o melhor para o povo ucraniano, e o fim rápido da guerra, devemos todos fazer votos para que o legitimo e democrático governo Ucraniano se mantenha quando a paz for finalmente alcançada, uma vez que, de outra maneira, o retomar da Ucrânia como grande país abastecedor de matérias primas agrícolas ficará seriamente condicionado.
A Ucrânia agrícola
À margem da produção pecuária, que se tem desenvolvido muito em todos os setores, em particular em aves e porcos, para Portugal e todos os países deficitários de cereais, a Ucrânia é um importante fornecedor.
Soja e colza
Em relação à soja, esta ainda é uma cultura pouco estendida, no entanto, tem um papel importante para a colza vendida em Portugal. Não porque Portugal importe muita colza da Ucrânia, mas porque a soja da Ucrânia é não-ogm, tendo muita procura nos mercados do nordeste da Europa, que agora, sem a possibilidade de lhe aceder, a substituem com maior incorporação de farinha de colza. Hoje, em Lisboa, a farinha de colza estaria pouco mais ou menos ao mesmo nível da farinha de soja. Assim, a função da farinha de colza na Europa é fornecer uma base de proteína não-ogm, mais que o seu valor nutricional comparado com a soja.
Girassol
A produção da Ucrânia é cerca 30% da produção mundial. A sua semente também é exportada, no entanto, a exportação de semente de girassol é pouco relevante, uma vez que a política industrial da Ucrânia tem sido, via impostos na exportação, fomentar que seja extraído o óleo em fábricas locais, e exportada a farinha e o óleo de girassol para todo o mundo. A farinha de girassol tem um papel importante a desempenhar como fonte de proteína não-ogm, pelo que, tal como dito em relação à colza, a sua valorização proteica é secundária, comparada com a necessidade de ter proteína não-ogm. Com a situação atual na Ucrânia, e representando a Ucrânia 30% da produção mundial de girassol, temos o preço do óleo de girassol quase ao nível do azeite.
Milho
A produção mundial são 1206 milhões de toneladas, pelo que a produção da Ucrânia de 42 milhões é relativamente pouco relevante. Acontece que a Ucrânia, em 20/21, exportou 80% da sua produção (23 milhões). Estas exportações alimentam, em particular, Portugal, Espanha e Holanda entre outubro e julho. Portugal importa cerca de 1.5 milhões de toneladas de milho ucraniano todos os anos. Estes 23 milhões de exportação comparam com o incremento de 22 milhões de toneladas que a China tem/teve de 19/20 para 20/21, e que estão na base do preço ter passado de 170 €/tn nos portos de Portugal durante vários anos, para os 250 € desde finais de 2020.
Trigo
Comparando com a produção mundial de 778 milhões, os 33 milhões da Ucrânia, são pouco significativos. No entanto, se perguntarmos aos egípcios se são poucas toneladas, os 16 milhões exportados (64% da produção) pela Ucrânia em 20/21, eles dirão que ajudaram a encher a barriga de 106 milhões de egípcios com pão, do pequeno-almoço ao jantar.
Em relação à Ucrânia, resta dizer que neste final de março, não há exportações de nada desde os seus portos no Mar Negro. Nas fronteiras terrestres, a oeste, existe alguma movimentação de comboios e camiões com cereais, mas nada que se compare com o volume que era exportado pelos portos. Resta saber por quanto tempo mais, com o desenrolar da guerra.
Proteínas
A farinha de colza em Lisboa, tendo por base os preços praticados no norte da Europa, deveria valer, teoricamente, cerca de 580 €. A farinha de girassol está sobre os 400 €, e assim deve permanecer até à nova colheita.
Em relação à soja, o tempo na América do Sul não podia ter sido pior. Desde janeiro que não para de chover na zona do equador, provocando perda de rendimento no norte do Brasil por excesso de água. No Sul do Brasil e na Argentina a situação é a inversa, um clima muito seco e perda de rendimento devido à seca. Entre uma coisa e outra, se em dezembro falávamos numa colheita no Brasil de 150 milhões de toneladas de soja, agora já se fala em 120 milhões, e na Argentina, os 50 milhões previstos em dezembro, estão agora em 40. Em ambos os casos, temos que ter presente um velho dito: colheitas grandes acabam por ser sempre maiores, e as pequenas menores serão.
A China, entretanto, já recuperou o efetivo de porcos que tinha antes da crise da peste suína, em 2019. Com isto não é de esperar um abrandamento acentuado das suas importações, antes pelo contrário, pelo que o mercado terá que contar com estas compras de soja. Adicionalmente, não podemos esquecer que a farinha de soja é um produto transformado, que na sua produção é consumido muito gás natural (para produção de vapor) e eletricidade. Com os preços atuais da energia, a farinha terá um sobre custo de 30-50 € em relação a 6 meses atrás. Assim é de esperar que a farinha de soja continue a ser oferecida sobre os 600 € em Lisboa, e atendendo ao panorama de redução de stocks finais, é mais provável que os preços subam do que desçam.
Cereais
Com o choque da guerra, nas semanas após o seu início, a preocupação dos operadores/importadores em Portugal foi perceber onde substituir as compras feitas com base na Ucrânia. Optaram pela América do Norte, Brasil e Roménia. O passo seguinte dos operadores foi oferecer milho com origem nessas regiões, tendo havido negócios acima dos 400 € por tonelada. No final de março, as ofertas até agosto já estão claramente abaixo dos 400 €, e de agosto a dezembro abaixo dos 350 €. Tudo isto são valores muito elevados, para quem esteve tantos anos habituado a comprar milho a 170 €. No entanto, caso a sementeira não seja feita na Ucrânia este mês de abril, e/ou o governo do Presidente Zelensky seja substituído por outro no desenrolar da guerra, podemos esquecer que o milho ucraniano vá chegar aos portos nacionais a partir de outubro. A isto temos que acrescentar o dito em relação à soja na América do Sul, ou seja, a produção de milho também vai ser pouca, pelo que quando o Brasil estiver a colher a Safrinha (a segunda colheita), pouco já haverá da Safra de milho e muita da Safrinha terá que ficar no Brasil para consumo interno. Assim, podemos esquecer de ter milho barato a partir de agosto, como nos tínhamos habituado.
Conclusão
Podemos estar tranquilos que os operadores de mercado encontraram e encontrarão alternativas para abastecer os portos nacionais de cereais (milho), felizmente; embora sejamos um país pobre, ainda há dinheiro para pagar pelos preços pedidos, não vai faltar produto para alimentar aos nossos animais. No entanto, devemos todos ter esperança para que a guerra termine o quanto antes, para assim permitir aos agricultores ucranianos fazerem as sementeiras de primavera, e em setembro termos milho para importar deste povo ucraniano que nos deve encher a todos de orgulho e amizade.
A paz esteja convosco.